...Às vezes dá-me p`a ler outras pra escrever, às vezes dá-me p`ouvir outras pra cantar, às vezes dá-me p`a rir outras p`a chorar... Eis que apenas "eu" e os "outros" vivemos no mesmo mundo, não assim tão longe...

17/08/2011

... como o sal ...



Magoa-me a saudade do sobressalto dos corpos, ferindo-se de ternura. Dói-me a distante lembrança do teu vestido caindo aos nossos pés. Magoa-me a saudade do tempo em que te habitava, como o sal ocupa o mar, como a luz recolhendo-se nas pupilas desatentas. Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo, tua noite sem remédio, tua virtude, tua carência... Eu, que longe de ti sou fraco. Eu, que já fui água, seiva vegetal, sou agora gota trémula, raiz exposta... Traz de novo, meu amor, a transparência da água. Dá ocupação à minha ternura vadia, mergulha os teus dedos no feitiço do meu peito, e espanta na gruta funda de mim, os animais que atormentam o meu sono...

Mia Couto in,
"saudade"

01/08/2011

... Desencontro ...


Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.


Jorge de Sena,
in 'Post-Scriptum'