...Às vezes dá-me p`a ler outras pra escrever, às vezes dá-me p`ouvir outras pra cantar, às vezes dá-me p`a rir outras p`a chorar... Eis que apenas "eu" e os "outros" vivemos no mesmo mundo, não assim tão longe...

08/12/2010

...quanto medo...


Quanto terror latente

nesse mar gelado

que desde sempre

levamos na alma.


António Castañeda

24/11/2010

... espera ...


Não importa ao tempo o minuto que passa,
mas o minuto que vem


machado de assis

entender pelo sentir


Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida. Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.

Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não - e de que serve reconhecê-lo ou não? - como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.

Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.
 
 
Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer - e não quando nós o deliberamos. Assim nasce um desencontro quantas vezes entre a mecânica dos nossos raciocínios e a verdade que em nós já é morta. No hábito dos gestos, as mãos tecem ainda na exterioridade de nós a plausibilidade do que em nós já não é plausível. Então nos é necessário substituirmos toda a aparelhagem de que nos serviríamos e já não serve. Surpresos olhamos quem fomos porque já nos não reconhecemos.

Atónitos perguntamos como foi possível?, quando, onde, porquê?, ao espanto da nossa transfiguração, ao incrível da cilada que nós próprios nos armámos, mesmo quando foi a vida que a armou; porque tudo quanto é da vida, e dos outros, e dos mil acontecimentos que quisermos, só existe eficaz e real quando abre em evidência na profundidade de nós. Como aceitar assim a força da razão, se a força dela está onde ela não está?
Vergílio Ferreira, in
'Invocação ao Meu Corpo'

11/11/2010

...dizer...


«é tão breve o silêncio quando dizer mais era urgente,

tão frágil o fogo das mãos sobre a pele,

tão lúcido o pensamento quando dizer tudo é pouco.»



isabel mendes ferreira

08/11/2010

... um sentido para a vida ...


Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer.

A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros. Não é o gozo que eu invejo (não dou um passo para o gozo) - é o pedreiro que passa por aqui logo de manhã com o pico às costas, assobiando baixinho, e já absorto no trabalho da pedra.
Se vale a pena viver a vida esplêndida - esta fantasmagoria de cores, de grotesco, esta mescla de estrelas e de sonho? ... Só a luz! só a luz vale a vida! A luz interior ou a luz exterior. Doente ou com saúde, triste ou alegre, procuro a luz com avidez. A luz é para mim a felicidade. Vivo de luz. Impregno-me, olho-a com êxtase. Valho o que ela vale. Sinto-me caído quando o dia amanhece baço e turvo. Sonho com ela e de manhã é a luz o meu primeiro pensamento. Qualquer fio me prende, qualquer reflexo me encanta. E agora mais doente, mais perto do túmulo, busco-a com ânsia.
Raul Brandão, in " Se Tivesse de Recomeçar a Vida "
"Só Sente Ansiedade pelo Futuro aquele cujo Presente é Vazio"

O principal defeito da vida é ela estar sempre por completar, haver sempre algo a prolongar.
Quem, todavia, quotidianamente der à própria vida "os últimos retoques" nunca se queixará de falta de tempo; em contrapartida, é da falta de tempo que provém o temor e o desejo do futuro, o que só serve para corroer a alma.
Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver. Qual o modo de escapar a uma tal ansiedade? Há um apenas: que a nossa vida não se projecte para o futuro, mas se concentre em si mesma.
Só sente ansiedade pelo futuro aquele cujo presente é vazio. Quando eu tiver pago tudo quanto devo a mim mesmo, quando o meu espírito, em perfeito equilíbrio, souber que me é indiferente viver um dia ou viver um século, então poderei olhar sobranceiramente todos os dias, todos os acontecimentos que me sobrevierem e pensar sorridentemente na longa passagem do tempo! Que espécie de perturbação nos poderá causar a variedade e instabilidade da vida humana se nós estivermos firmes perante a instabilidade?
Apressa-te a viver, caro Lucílio, imagina que cada dia é uma vida completa. Quem formou assim o seu carácter, quem quotidianamente viveu uma vida completa, pode gozar de segurança; para quem vive de esperanças, pelo contrário, mesmo o dia seguinte lhe escapa, e depois vem a avidez de viver e o medo de morrer, medo desgraçado, e que mais não faz do que desgraçar tudo.
Séneca, in
'Cartas a Lucílio'

26/10/2010

... amor: matéria: vida ...


«Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio - nem sequer o princípio.»

Inês Pedrosa in
"Fazes-me Falta"

15/10/2010

...matas-me...

matas-me com o teu olhar

Noites frias de marfim, noites frias ao luar, a conversa já no fim... matas-me com o teu olhar... Sabes que esta vida corre, como a sombra pelo chão, nada fica, tudo foge, ouve a voz do coração... matas-me com o teu olhar... São como cubos de gelo, que eu sinto ao tocar, as palavras têm medo, matas-me com o teu olhar...
uhf

11/10/2010

...à luz do silêncio...

quero-te a ti ... " tan tan tan "

Não quero memórias passadas
Águas levadas
Em rios já mortos

Não quero histórias contadas
De reis e de fadas
Em fins inglórios

Não quero horas marcadas
Nem prendas caras
Em dias de festa

Não quero formas erradas
Nem beijos nem facas
Na ferida aberta

Não quero amor ao minuto
Nem ódio eterno
Não quero o tempo indefinido e diminuto
Entre o Outono e o Inverno

Não quero abraços encolhidos
Nem sonhos perdidos
De alguém que acordou

Não quero choros escolhidos
Em mares perdidos
Que alguém nem tocou

Não quero a estreia da mentira
Nem o final da verdade
Não quero o sindroma da vida
Que embala a saudade

Não quero que me queiram nunca
Se um dia puderem não me querer
Não quero sentir qualquer morte
Sem poder morrer

Não quero
Tudo o que me quer assim
Como apontamento numa agenda

Quero a liberdade dos sentidos
Sem segundos contidos
Sem limite que me prenda

Faça-se silêncio
Entre a inércia e o acto!!!
Que eu tenho com o tempo um pacto
Onde, nem um, nem outro pode existir

Faça-se silêncio
Ouçam-me, sentir!!!

08/10/2010

... dias de chuva ...


Sempre gostei dos dias de chuva que aparecem inesperadamente no meio do Verão. Aquela sensação de frio que nos confirma que havemos sempre de precisar do conforto de um abraço. Até porque os "Verões" acabam sempre.
Gosto do cheiro da terra molhada, da forma como a água se torna parte integrante da realidade à nossa volta, e nos obriga a olhar de maneira diferente para as coisas de todos os dias.
Gosto do som do eco da água que me chega. Identifico-me com ela, porque a imagino perdida, desencontrada de si, sem perceber o que lhe compete mais fazer aqui para além de se abandonar a esta queda inevitável e contínua...
Também eu me sinto perdida em dias assim. À espera de compreender melhor porque é que também eu me abandono à queda.

... não desistas ...


A luz da manhã e o teu corpo por dentro... E a pele na pele de quem se quer tanto
Não tenho mais segredos... Escondi-me nos teus dedos... Somos metades iguais
Mas hoje só hoje... Leva-me para onde vais... Que eu quero dizer-te:
Não desistas de mim...
Não te percas agora...

Não desistas de mim...
A noite ainda demora...

07/10/2010

... esta paz ...


... "Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser." ...


Fernando Pessoa

28/09/2010

... a canoa ...


“Se um homem estiver atravessando um rio, e uma canoa vazia bater em seu barco, ele não ficará com raiva. Mas se ele avistar alguém na canoa, irá gritar para que desvie sua rota. Se a pessoa não o escuta, grita novamente, fica com raiva, diz palavrões. Faz tudo para evitar o desastre. Se a canoa estivesse vazia, este homem não estaria berrando, nem estaria com raiva. Portanto, saiba que irritar alguém de vez em quando, significa mostrar que você está vivo, e no leme do seu destino. Significa, sobretudo, que os homens notam a sua presença, e tentam se comunicar com você."
Chuang Tzu


23/09/2010

...solitária?!...


O que de melhor ocorre aos homens é o que lhes ocorre quando estão sozinhos, aquilo que não se atrevem a confessar, não já ao próximo mas nem sequer, muitas vezes, a si mesmos, aquilo de que fogem, aquilo que encerram em si quando estão em puro pensamento e antes de que possa florescer em palavras. E o solitário costuma atrever-se a expressá-lo, a deixar que isso floresça, e assim acaba por dizer o que todos pensam quando estão sozinhos, sem que ninguém se atreva a publicá-lo. O solitário pensa tudo em voz alta, e surpreende os outros dizendo-lhes o que eles pensam em voz baixa, enquanto querem enganar-se uns aos outros, pretendendo acreditar que pensam outra coisa, e sem conseguir que alguém acredite.
 
Miguel de Unamuno, in 'Solidão'

05/09/2010

...O entendimento das almas ...


As almas têm um modo especial de se entenderem, de entrarem em intimidade, de se tratarem, até, por tu, enquanto as pessoas ainda se sentem embaraçadas com o comércio das palavras, na escravidão das exigências sociais. As almas têm necessidades próprias e aspirações próprias, que o corpo finge não reconhecer quando se vê impossibilitado de as satisfazer a de as traduzir em acções. E de todas as vezes que duas pessoas comunicam entre si desta maneira, apenas como almas, se encontram a sós num qualquer lugar, experimentam uma perturbação angustiosa e quase um repúdio violento de todo e qualquer contacto material, um sofrimento que os afasta e que cessa de imediato logo que intervém uma terceira pessoa. Então, desvanecida a angústia, as duas almas aliviadas buscam-se reciprocamente e voltam a sorrir uma para a outra. 

Luigi Pirandello , in '

O Falecido Mattias Pascal'

04/09/2010

... não importa ...



Não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.


William Shakespeare

27/08/2010

... Recomece ...


Você pode ter defeitos, viver ansioso e ficar irritado algumas vezes, mas não se esqueça de que sua vida é a maior empresa do mundo. E você pode evitar que ela vá a falência. Há muitas pessoas que precisam, admiram e torcem por você. Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestade, caminhos sem acidentes, trabalhos sem fadigas, relacionamentos sem desilusões. Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros. Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas refletir sobre a tristeza. Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos. Não é apenas ter júbilo nos aplausos, mas encontrar alegria no anonimato. Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise. Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história. É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma. É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida. Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. É ter coragem para ouvir um “não”. É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta. Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós. É ter maturidade para falar “eu errei”. É ter ousadia para dizer “me perdoe”. É ter sensibilidade para expressar “eu preciso de você”. É ter capacidade de dizer “eu te amo”. É ter humildade da receptividade. Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades para você ser feliz…

E, quando você errar o caminho, recomece.

Pois assim você descobrirá que ser feliz não é ter uma vida perfeita. Mas usar as lágrimas para irrigar a tolerância. Usar as perdas para refinar a paciência. Usar as falhas para lapidar o prazer. Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.

Jamais desista de si mesmo. Jamais desista das pessoas que você ama. Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um espetáculo imperdível, ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.
Fernando Pessoa

16/08/2010

... ir ver ...


" Um homem precisa viajar por sua conta. Não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver. "

Amyr Klink

28/07/2010

... a tua sombra ...

(...)

Uma pessoa não está... nítida e imóvel diante dos nossos olhos, com as suas qualidades, os seus defeitos, os seus projectos, as suas intenções para connosco (como um jardim que contemplamos, com todos os seus canteiros, através de um gradil), mas é uma sombra em que não podemos jamais penetrar, para a qual não existe conhecimento directo, a cujo respeito formamos inúmeras crenças, com auxílio de palavras e até de actos, palavras e actos que só nos fornecem informações insuficientes e aliás contraditórias, uma sombra onde podemos alternadamente imaginar, com a mesma verosimilhança, que brilham o ódio e o amor.
Marcel Proust,
in 'O Caminho de Guermantes'

12/07/2010

... terei a esperança ...

Frida K.

''Toda esta raiva simplesmente me fez compreender melhor que eu o amo mais do que a minha própria pele, e que, embora você não me ame tanto assim, pelo menos me ama um pouquinho - não é? Se isto não for verdade, sempre terei a esperança de que possa ser, e isso me basta...''


excerto do final de uma das inumeras cartas de frida a diego

e bem que poderia ser escrita de mim, para ti

11/07/2010



Que Deus não permita que eu perca o ROMANTISMO, mesmo eu sabendo que as rosas não falam. Que eu não perca o OTIMISMO, mesmo sabendo que o futuro que nos espera não é assim tão alegre. Que eu não perca a vontade de VIVER, mesmo sabendo que a vida é, em muitos momentos, dolorosa... Que eu não perca a vontade de ter grandes AMIGOS, mesmo sabendo que, com as voltas do mundo, eles acabam indo embora de nossas vidas... Que eu não perca a vontade de AJUDAR as pessoas, mesmo sabendo que muitas delas são incapazes de ver, reconhecer e retribuir esta ajuda. Que eu não perca o EQUILÍBRIO, mesmo sabendo que inúmeras forças querem que eu caia.

Que eu não perca a VONTADE de amar, mesmo sabendo que a pessoa que eu mais amo, pode não sentir o mesmo sentimento por mim...

Que eu não perca a LUZ e o BRILHO no olhar, mesmo sabendo que muitas coisas que verei no mundo, escurecerão meus olhos... Que eu não perca a GARRA, mesmo sabendo que a derrota e a perda são dois adversários extremamente perigosos. Que eu não perca a RAZÃO, mesmo sabendo que as tentações da vida são inúmeras e deliciosas. Que eu não perca o sentimento de JUSTIÇA, mesmo sabendo que o prejudicado possa ser eu. Que eu não perca o meu forte ABRAÇO, mesmo sabendo que um dia meus braços estarão fracos... Que eu não perca a BELEZA e a ALEGRIA de ver, mesmo sabendo que muitas lágrimas brotarão dos meus olhos e escorrerão por minha alma... Que eu não perca o AMOR por minha família, mesmo sabendo que ela muitas vezes me exigiria esforços incríveis para manter a sua harmonia.
Que eu não perca a vontade de doar este enorme AMOR que existe em meu coração, mesmo sabendo que muitas vezes ele será submetido e até rejeitado. Que eu não perca a vontade de ser GRANDE, mesmo sabendo que o mundo é pequeno... E acima de tudo... Que eu jamais me esqueça que Deus me ama infinitamente, que um pequeno grão de alegria e esperança dentro de cada um é capaz de mudar e transformar qualquer coisa, pois.... a vida é construída nos sonhos e concretizada no amor!

chico xavier

21/06/2010

... vive...desiste ...

Sem uma palavra a escrever, Martim no entanto não resistiu à tentação de imaginar o que lhe aconteceria se o seu poder fosse mais forte que a prudência. «E se de repente eu pudesse?», indagou-se ele. E então não conseguiu se enganar: o que quer que conseguisse escrever seria apenas por não conseguir escrever «a outra coisa». Mesmo dentro do poder, o que dissesse seria apenas por impossibilidade de transmitir uma outra coisa. A Proibição era muito mais funda..., surpreendeu-se Martim.

Como se vê, aquele homem terminara por cair na profundeza que ele sempre sensatamente evitara.


E a escolha tornou-se ainda mais funda: ou ficar com a zona sagrada intacta e viver dela - ou traí-la pelo que ele certamente terminaria conseguindo e que seria apenas isso: o alcançável.

Como quem não conseguisse beber a água do rio senão enchendo o côncavo das próprias mãos - mas já não seria a silenciosa água do rio, não seria o seu movimento frígido, nem a delicada avidez com que a água tortura pedras, não seria aquilo que é um homem de tarde junto do rio depois de ter tido uma mulher. Seria o côncavo das próprias mãos. Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive.

Clarice Lispector,
in "A Maçã no Escuro"

... expectativas ...


Vou fazendo horas - metade da vida é uma perdulária expectativa. E tonta. E ansiosa. E inútil. Como quem se sentou numa gare de caminho-de-ferro, à espera de um comboio que não se sabe quando passará e qual o seu destino. Certeza, e relativa, está apenas no local de espera. E às vezes na própria espera. Se chegamos a concretizar a viagem, o lugar aonde o comboio nos levou, desilude-nos. Isso, porém, não impede que tudo venha a repetir-se. Desperdiça-se o instante real e concreto, mas que, como areia, se nos escapa das mãos, em favor de uma ilusória vez seguinte.
Fernando Namora,
in 'Jornal sem Data'

18/06/2010

... até sempre mestre ...




(José Saramago)
Escritor português e Prémio Nobel da Literatura em 1998

Azinhaga,16 de Novembro de 1922
Lanzarote, 18 de Junho de 2010 

16/06/2010

... ignorante ou sábia? ...


Há duas espécies de ingenuidade: uma que ainda não percebeu todos os problemas e ainda não bateu a todas as portas do conhecimento; e outra, de uma espécie mais elevada, que resulta da filosofia que, tendo olhado dentro de todos os problemas e procurado orientação em todas as esferas do conhecimento, chegou à conclusão de que não podemos explicar nada, mas temos de seguir as convicções cujo valor inerente nos fala de maneira irresístivel.

Albert Schweitzer

15/06/2010

... para além de ...


“A loucura é viver na solidão dos outros, numa ordem que ninguém partilha. Durante muito tempo achei que escrever podia resgatar-me da dissolução e da escuridão, porque implica uma sólida ponte de comunicação com os outros e anula, por isso, a solidão mortal... Depois, compreendi que aqueles a quem chamamos loucos estão, muitas vezes, para além de qualquer resgate.”

Rosa M,
a louca da casa in, rio das flores de MST.

08/06/2010

... ninguém ...

«Todos pensam em mudar a humanidade,
mas ninguém pensa em mudar a si mesmo.»
Leon Tolstoy

... sempre a paisagem ...


Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam. Até os mais próximos, os mais amigos, me cravaram na hora própria um espinho envenenado no coração. A terra, com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa. É claro que nunca um panorama me interessou como gargarejo. É mesmo um favor que peço ao destino: que me poupe à degradação das habituais paneladas de prosa, a descrever de cor caminhos e florestas. As dobras, e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer como ela, olhar um abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. Bem sei que há gente que encontra o mesmo universo no jogo dum músculo ou na linha dum perfil. Lá está o exemplo de Miguel Angelo a demonstrá-lo. Mas eu, não. Eu declaro aqui a estas fundas e agrestes rugas de Portugal que nunca vi nada mais puro, mais gracioso, mais belo, do que um tufo de relva que fui encontrar um dia no alto das penedias da Calcedónia, no Gerez. Roma, Paris, Florença, Beethoven, Cervantes, Shakespeare... Palavra, que não troco por tudo isso o rasgão mais humilde da tua estamenha, Mãe!
 
Miguel Torga, in "Diário (1942)"

01/06/2010

...perturbada...


O que perturba os homens não são as coisas, e sim as opiniões que eles têm em relação às coisas. A morte, por exemplo, nada tem de terrível, senão tê-lo-ia parecido assim a Sócrates. Mas a opinião que reina em relação á morte, eis o que a faz parecer terrível a nossos olhos. Por conseguinte, quando estivermos embaraçados, perturbados ou penalizados, não o atribuamos a outrem, mas a nós próprios, isto é, às nossas próprias opiniões.

Epicteto,
in 'Manual'

10/05/2010

...aprendes?!...

(um cromo repetido na minha caderneta, só porque sim, porque hoje preciso de o reler)




Depois de algum tempo aprendes a diferença, a subtil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma. E aprendes que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança. E começas a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas. E começas a aceitar as tuas derrotas com a ...cabeça erguida e os olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança. E aprendes a construir todas as tuas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair no meio do vão.

Depois algum tempo, aprendes que o sol queima se ficares exposto muito tempo. E aprendes que não importa o quanto te importas, algumas pessoas simplesmente não se importam... e aceitas que não importa o quão boa seja uma pessoa, ela vai magoar-te de vez em quando e tu tens de perdoá-la por isso!Aprendes que falar pode aliviar dores emocionais. Descobres que se levam anos para construir confiança e apenas segundos para a destruir, e que tu podes fazer coisas num instante, das quais te arrependerás pelo resto da vida.

Aprendes que as verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longa distância. Aprendes que o que importa não é o que tens na vida, mas quem tens na vida! E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher. Aprendes que não tens que mudar de amigos se compreenderes que os amigos mudam, percebes que o teu amigo e tu podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos. Descobres que as pessoas com quem mais te importas na vida são tomadas de ti muito depressa, por isso devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pois pode ser a última vez que as vemos.

Aprendes que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós próprios. Começas a aprender que não te deves comparar com os outros, mas com o melhor que tu mesmo podes ser. Descobres que levas muito tempo a tornares-te na pessoa que queres ser e que o tempo é curto. Aprendes que não importa onde já chegaste, mas onde vais, mas se não sabes para onde vais, qualquer lugar serve.

Aprendes que ou controlas os teus actos ou eles controlar-te-ão, e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados. Aprendes que heróis são aqueles que sempre fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as consequências. Aprendes que paciência requer muita prática. Descobres que algumas vezes a pessoa que esperas que te calque quando cais é umas das poucas que te ajudam a levantar.

Aprendes que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que tiveste e com o que aprendeste com elas, do que com quantos aniversários celebraste. Aprendes que há mais dos teus pais em ti do que supunhas. Aprendes que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são tolices, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso. Aprendes que quando estás com raiva tens o direito de estar, mas isso não te dá o direito de seres cruel!

Descobres que só porque alguém não te ama da maneira que queres que te ame, não significa que essa pessoa não te ame com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas não sabem como demonstrar ou viver isso. Aprendes que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém... algumas vezes tens de aprender a perdoar-te a ti mesmo! Aprendes que com a mesma severidade com que julgas, serás em algum momento condenado. Aprendes que não importa em quantos pedaços o teu coração foi partido, o mundo não pára para que o concertes. Aprendes que o tempo não é algo que possa voltar para trás.

Portanto, planta o teu jardim e decora a tua alma, ao invés de esperares que alguém te traga flores. E aprendes que realmente podes suportar... que realmente és forte! E que podes ir muito mais longe depois de pensares que não podes mais... e que realmente a nossa vida tem valor e que tu tens valor diante da vida! As nossas dúvidas são traidoras e fazem-nos perder o bem que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar."

william shakespear

01/05/2010

...o justo valor...


Não julgues as coisas ausentes como presentes; mas entre as coisas presentes pondera as de mais preço e imagina com quanto ardor as buscarias se não as tivesses à mão. Mas ao mesmo tempo toma cuidado, não seja caso que ao deliciares-te assim nas coisas presentes te habitues a sobrestimá-las; procedendo assim, se um dia as viesses a perder, davas em louco rematado.
Marco Aurélio,
in 'Pensamentos'

27/04/2010

...dar e receber...


Uma das leis cómicas da vida é a seguinte: é amado não quem dá, mas quem exige. Quer dizer, é amado aquele que não ama, porque quem ama dá. E compreende-se: dar é um prazer mais inesquecível do que receber; a pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária, quer dizer que a amamos.  Dar é uma paixão, quase um vício. A pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária.
Cesare Pavese,
in 'O Ofício de Viver'

23/04/2010

... Donos ?!...


O que é a experiência? Nada. É o número dos donos que se teve. Cada amante é uma coronhada. São mais mil no conta-quilómetros. A experiência é uma coisa que amarga e atrapalha. Não é um motivo de orgulho. É uma coisa que se desculpa. A experiência é um erro repetido e re-repetido até à exaustão. Se é difícil amar um enganador, mais difícil ainda é amar um enganado.

Desengane-se de vez a rapaziada. Nenhuma mulher gosta de um homem «experiente». O número de amantes anteriores é uma coisa que faz um bocadinho de nojo e um bocadinho de ciúme. O pudor que se exige às mulheres não é um conceito ultrapassado — é uma excelente ideia. Só que também se devia aplicar aos homens. O pudor valoriza. 0 sexo é uma coisa trivial. É por isso que temos de torná-lo especial. Ir para a cama com toda a gente é pouco higiénico e dispersa as energias. Os seres castos, que se reprimem e se guardam, tornam-se tigres quando se libertam. E só se libertam quando vale a pena. A castidade é que é «sexy». Nos homens como nas mulheres. A promiscuidade tira a vontade.

Uma mulher gosta de conquistar não o homem que já todas conquistaram, saquearam e pilharam, mas aquele que ainda nenhuma conseguiu tocar. O que é erótico é a resistência, a dificuldade e a raridade. Não é a «liberdade», a facilidade e a vulgaridade. Isto parece óbvio, mas é o contrário do que se faz e do que se diz. Porque será escandaloso dizer, numa época hippificada em que a virgindade é vergonhosa e o amor é bom por ser «livre», que as mulheres querem dos homens aquilo que os homens querem das mulheres? Ser conquistador é ser conquistado. Ninguém gosta de um ser conquistado. O que é preciso conquistar é a castidade.

Miguel Esteves Cardoso,
in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'

21/04/2010

.. troca-te comigo ...


É marca da impotência para amar, não elevação do amor. Se o escultor despreza a argila, terá de modelar o vento. Se o teu amor despreza os sinais do amor a pretexto de atingir a essência, o teu amor não passa de um palavreado. Não descuides as felicitações, nem os presentes, nem os testemunhos. Serias capaz de amar a propriedade, se fosses excluindo dela, um por um, como supérfluos, porque particulares demais, o moinho, o rebanho, a casa? Como construir o amor, que é rosto lido através da urdidura, se não há urdidura sobre a qual escrever?
(...)
Sem cerimonial de pedras, não haveira catedral. Nem haverá amor sem cerimonial em vistas do amor. Eu só atinjo a essência da árvore se ela modelou lentamente a terra segundo o ceriomonial das raízes, do tronco e dos ramos. Nessa altura, ela é una. Tal árvore e não uma outra.
(...)
Ora o amor não e tesouro a conquistar, mas obrigação de parte a parte, fruto de um cerimonial aceite, rosto dos caminhos da troca.
(...)
Tu não podes atribuir nada a ti próprio. Não és cofre nenhum. És o nó da diversidade. O templo, também é sentido das pedras.

Antoine de Saint-Exupéry,
in "Cidadela"

19/04/2010

...eras tu...


o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias, como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo, mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer. eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar, que eu amava quando imaginava que amava. era a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto. era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde. muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
j.l.peixoto

17/04/2010

... devagar ...


"Na vida as coisas, às vezes, andam muito devagar. Mas é importante não parar. Mesmo um pequeno avanço na direção certa já é um progresso, e qualquer um pode fazer um pequeno progresso. Se você não conseguir fazer uma coisa grandiosa hoje, faça alguma coisa pequena. Pequenos riachos acabam convertendo-se em grandes rios. Continue andando e fazendo. O que parecia fora de alcance esta manhã vai parecer um pouco mais próximo amanhã ao anoitecer se você continuar movendo-se para frente. A cada momento intenso e apaixonado que você dedica a seu objetivo, um pouquinho mais você se aproxima dele. Se você pára completamente é muito mais difícil começar tudo de novo. Então continue andando e fazendo. Não desperdice a base que você já construiu. Existe alguma coisa que você pode fazer agora mesmo, hoje, neste exato instante. Pode não ser muito mas vai mantê-lo no jogo. Vá rápido quando puder. Vá devagar quando for obrigado. Mas, seja, lá o que for, continue. O importante é não parar!!!"

15/04/2010

...la passión...


Você sonha com um amor, puro, sem condição, forte, eterno como o sol.. Com isto se desenha uma paixão...Você sonha com um amor limpo, com a devoção, livre, para extrair as asas do coração... Voar onde se protege a paixão...

A paixão, parece-se com um vento inquieto que se converte em liberdade... É saber que existe alguém mais que vive desejando poder te encontrar... É viajar sem medo entre as estrelas e imensidade, é atravessar o fogo, caminhar sobre as águas...Transformar um sonho em realidade...

A paixão é essa força imensa que ele move toda a criação. É saber que alguém está te esperando além de onde o sol se esconde. É apagar para sempre de você, a palavra solidão... São duas almas que unem deste instante até a eternidade... Nunca te faltará alguém em quem confiar ... Um anjo que te levará pela mão a descobrir um mundo de paixão...

08/04/2010

...Há Momentos...


Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la. Sonhe com aquilo que você quiser. Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que se quer. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade aparece para aqueles que choram. Para aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas. O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido. Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do passado. A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar duram uma eternidade. A vida não é de se brincar porque um belo dia se morre.
Clarice Lispector

06/04/2010

...e assim tu...

almorol

Da luz nada sei, nem donde

vem nem para onde vai,

apenas quero que a luz alumie,

e também não peço à noite explicações,

espero-a e envolve-me,

e assim tu pão e luz

e sombra és.
pablo neruda

05/04/2010

...amanhã seremos outros...


Quem somos, senão o que imperfeitamente sabemos de um passado de vultos mal recortados na neblina opaca, imprecisos rostos mentidos nas páginas antigas de tomos cujas palavras não são, de certo, as proferidas, ou reproduzem sequer actos e gestos cometidos. Ergue-se a lâmina: metal e terra conhecem o sangue em fronteiras e destinos pouco a pouco corrigidos na memória indecifrável das areias. A lápide, que nomeia, não descreve e a história que o historia, eco vário e distorcido, é já diversa e a si própria se entretece na mortalha de conjecturados perfis. Amanhã seremos outros. Por ora nada somos senão o imperfeito limbo da legenda que seremos.

Rui Knopfli,
in "O Corpo de Atena"

30/03/2010

...fingir...


fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

(José Luís Peixoto)

28/03/2010

...preciso ser-te...

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Identidade
Mia Couto

27/03/2010

...Esperarei por ti...

Horas, horas sem fim,
graves, profundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.

Até que um passáro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
Eugénio de Andrade

24/03/2010

...porque não me falas?...


Gosto quando falas de ti...e vou te percorrendo
e vou descortinando a tua vida
na paisagem sem nuvens, cenário de meus desejos tranqüilos.

Gosto quando me falas de ti... e então percebo
que antes mesmo de chegar, me adivinhavas,
que ninguém te tocou, senão como o vento
que não deixa vestígios, e se vai
desfeito em carícias vãs...

Gosto quando me falas de ti... quando aos poucos a luz
vasculha todos os cantos de sombra, e eu só, te encontro
e te reencontro em teus lábios, apenas pintados,
maduros, mas nunca mordidos antes da minha audácia.

Gosto quando me falas de ti... e muito mais adiantas
em teus olhos descampados, sem emboscadas,
e acenas tua alma, sem dobras, como um lençol
distendido, e descortino teu destino, como um caminho certo,
cuja primeira curva foi o nosso encontro.

Gosto quando me falas de ti ... porque percebo que te desnudas
como uma criança, sem maldade,
e que eu cheguei justamente para acordar tua vida
que se desenrolava inútil como um novelo
que nos cai da mão...

J.G.de Araújo Jorge
In Quatro Damas

22/03/2010

...vagueio por aí...


Podemos muito bem, se for esse o nosso desejo, vaguear sem destino pelo vasto mundo do acaso. Que é como quem diz, sem raízes, exactamente da mesma maneira que a semente alada de certas plantas esvoaça ao sabor da brisa primaveril.

E, contudo, não faltará ao mesmo tempo quem negue a existência daquilo a que se convencionou chamar o destino. O que está feito, feito está, o que tem se ser tem muita força e por aí fora. Por outras palavras, quer queiramos quer não, a nossa existência resume-se a uma sucessão de instantes passageiros aprisionados entre o «tudo» que ficou para trás e o «nada» que temos pela frente. Decididamente, neste mundo não há lugar para as coincidências nem para as probabilidades.

Na verdade, porém, não se pode dizer que entre esses dois pontos de vista exista uma grande diferença. O que se passa - como, de resto, em qualquer confronto de opiniões - é o mesmo que sucede com certos pratos culinários: são conhecidos por nomes diferentes mas, na prática, o resultado não varia.
Haruki Murakami,
in 'Em Busca do Carneiro Selvagem'

18/03/2010

14/03/2010

...Não entendo...


Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

10/03/2010

...Que me ofereces?...


Minha solidão não tem nada a ver com a presença ou ausência de pessoas… Detesto quem me rouba a solidão, sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia….”

Friedrich Nietzsche

09/03/2010

...Porque...


Porque os outros se mascaram mas tu não

Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia de Mello Breyner Andersen
in
“No Tempo Dividido e Mar Novo"

03/03/2010

...mau...

E se comigo estás a ser verdadeiro, estás a ser mau...


Pouco importa o julgamento dos outros. Os seres são tão contraditórios que é impossivel atender às suas demandas, satisfazê-los. Tenha em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro...
Dalai Lama

...o dever para com nós própios...




E... perante isto, sigo, aprendo algo que ainda não sabes,  que deixar-se influenciar é deixar que a nossa alma se abafe, e a dos que amamos se esvaneça... Alguma coisa aqui falta, se não a palavra, o sentimento... a água que rega a flor... ou mesmo a influência do amor...
malu


Influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o actor de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmos. É verdade que são caridosas. Alimentam os esfomeados e vestem os pobres. Mas as suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. A coragem desapareceu da nossa raça e se calhar nunca a tivemos realmente. O temor à sociedade, que é a base da moal, e o temor a Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam.

Oscar Wilde,
in "O Retrato de Dorian Gray"